Ao entrar no interior de um dos países mais pobres da África você
tem apenas uma certeza: a Etiópia é
dourada.
Embarcando num ônibus de madrugada na praça Meskel, em Addis Ababa
fica difícil de acreditar no cenário que se vê ao acordar, no meio da estrada.
São plantações de trigo até onde a vista alcança iluminadas pela luz da manhã
em intermináveis tons de amarelo. Riqueza extraída da terra e aclarada pelo céu.
Após conhecer a capital Addis Ababa (post exclusivo futuramente), nossa
primeira parada foi em Bahir Dar, porta de entrada da região mais turística do
país – a rota histórica. À beira do maior lago do país, a cidade tem um clima
de veraneio aliado a um forte componente histórico dado pelos mosteiros antiquíssimos
espalhados pelas margens e ilhas da região.
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Entrada do mosteiro Kebran Gabriel. |
Em todo percurso de ônibus e durante nossa estadia na cidade,
pudemos perceber o potencial turístico da região – ainda a ser explorado.
Considerando que este é o roteiro mais batido pelos visitantes, ficamos
surpresos ao perceber que nós dois éramos uma atração à parte. O motorista do
ônibus ficava o tempo todo perguntando se estávamos gostando da viagem, algumas
pessoas pediram para tirar foto com a gente. Só se fala o amárico e o inglês é
uma exceção bastante limitada – tentar decifrar algum prato num cardápio só com
o alfabeto deles é uma diversão.
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Embarcação tradicional feita com papiro. |
Mas quem sempre adora a visão de um turista branquelo recém chegado
são as crianças etíopes. Ao caminhar pelas ruas de Bahir Dar íamos aos poucos
sendo seguidos por uma penca de meninos e meninas de dois a sete anos que se
amontoavam exponencialmente ao nosso redor. Em pouco tempo percebemos que a
aproximação deles era feita em uma sequência única, e infelizmente viciada por
um turismo de culpa, conduzindo os pequenos à uma cantilena idêntica que se
repete por todo o país: Hello / What’s
your name? / Give me money. / Give me pen. (Olá / Qual o seu nome? / Me dá
dinheiro. / Me dá caneta.) Quando convencidas de que dali não sairia nada, ou
as crianças perdiam o interesse ou tentavam continuar a conversa em amárico – o
que não durava muito. Para nossa tristeza percebemos que este é um
comportamento padrão e profundamente arraigado no país – mas isso fica para um
próximo texto em Percepções.
As acomodações na cidade eram um prenúncio do que encontraríamos pelo
país: antigas, mal cuidadas e quase sempre indisponíveis. Para piorar nossa
situação um feriado nacional e uma comemoração da federação etíope reunia boa
parte do país nesse pequeno balneário. Evidente que não sabíamos disso e quase
acabamos dormindo na rua.
A grande atração da cidade, além do imenso lago é a grande
concentração de mosteiros cristãos ortodoxos, quase todos localizados à margens
do lago ou mesmo em ilhas. Apesar de não
termos conseguido negociar um bom preço para alugar o barco para visitar os
mosteiros (mesmo com toda lábia turca do Sr. Ivan Marques), decidimos que
iríamos de qualquer jeito.
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O lado de fora não dá nenhuma dica da riqueza do interior. |
Localizado no meio de uma das vilas nas margens do imenso lago, o Ura
Kidane Meret foi construído no início do século XIV para celebração das missas
cristãs ortodoxas e continua em uso até hoje.
A construção é diferente de
qualquer monumento religioso que normalmente temos como referência, a começar
pela arquitetura. Com técnicas que são usadas até hoje, as casas nesta região
têm formato circular e são erguidas com uma fundação de pedra e/ou troncos de
madeira na vertical (os nossos tijolos) que são “preenchidos” com uma mistura
de barro e palha de trigo, dando às paredes um aspecto de papel machê. O teto é
sustentado por uma estrutura de madeira, em formato cônico, e coberto por palha
entrelaçada (nossas telhas).
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É dessa parte que os fiéis acompanham a missa. |
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Não parece uma santa? |
Os mosteiros seguem exatamente este mesmo padrão contando com duas
estruturas circulares: uma externa, somente de madeira e sem preenchimento de
barro e palha, que permite iluminação e ventilação; e outra interna,
concêntrica, com pinturas sagradas trabalhadas do teto ao chão em toda a
circunferência da maqdas (santuário
interno). Lá dentro, onde só é permitida a entrada dos monges, que cada um dos
mosteiros guarda uma réplica da Arca da Aliança trancada a sete chaves e só
exposta nas missas.
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Detalhe de uma parede do Ura Kidane. S. Jorge onipresente. |
É interessante perceber nas pinturas a forte presença da Virgem
Maria – muitas vezes mais importante do que o próprio filho – e de vários
santos com histórias bastante particulares que permeiam o cristianismo ortodoxo.
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Gabi devidamente trajada dentro do Ura Kidane. |
As relíquias também são elementos bastante presentes e têm destaque
nos minúsculos museus que ficam ao lado dos mosteiros. Ali são expostos pedaços
de cajados, coroas e ornamentos que, segundo dizem, foram usados pelos santos
que fundaram os mosteiros. Além disso é possível folhear escrituras
antiquíssimas ainda feitas em pele de cabra e escritas em uma língua anterior
ao amárico, o geez. As cruzes
ortodoxas também têm uma simbologia importante porque além de serem um trabalho
riquíssimo de simetria diferem em cada região.
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Quase desmaiamos ao ver que estávamos manuseando livros de mais três séculos. |
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vigas de sustentação do telhado trabalhadas |
Seguimos para o segundo mosteiro, de Debre Maryam, originalmente do século XIV mas foi reformado no século XIX.
Finalmente fomos para Kebran Gabriel, que data do século XVII e só
permite a entrada de homens – e você, mulher, tem que ficar de castigo
esperando num banquinho nas margens da ilha.
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Sorry, no "ladis" |
Quando voltou, Ivan me contou que
a igreja estava fechada para reforma mas que ele pode ver o suposto cajado que
o santo fundador deste monastério usou para matar a cobra que era adorada no
lugar do Deus verdadeiro.
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A cruz da direita é a arma do crime ambiental. |
É interessante perceber que o país mistura suas lendas próprias com
a história contada na bíblia para formar sua própria religião. Nesse sentido,
visitar os mosteiros e igrejas torna-se uma oportunidade de conhecer através
das imagens desenhadas ricamente nas paredes um pouco mais das crenças locais.
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O santo que deu de beber dos próprios olhos ao passarinho. |
Os santos estão em todos os lados: há o canibal que foi poupado pela
Virgem Maria, o outro que viu um passarinho morrer de sede no deserto e deu a
agua de seu próprio olho para salvá-lo e, é claro, São Jorge.
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O santo canibal! |
Retratado em
todos os cantos, o suposto cavaleiro da Capadócia é figurinha fácil em
pinturas, livros, mosaicos. No fim, os mosteiros são uma verdadeira história em
quadrinhos gigante, pintados com devoção e suas mensagens tidas como fatos
históricos pelos etíopes, não importando quão fantásticas elas sejam.
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Visitas somente sem sapatos! |
E ai de
quem dar uma risadinha descrédula ao lado do padre (que invariavelmente pedirá
dinheiro para mostrar a igreja apesar de você já ter pagado a entrada).
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