Ainda em Bahar Dar, pesquisando um pouco mais sobre as grandes
atrações da Etiópia, um dos lugares que mais nos chamou a atenção foram as
montanhas Simien, localizadas no norte do país.
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A aventureira caminha nas trilhas da montanha. |
Reconhecida pela UNESCO como Patrimônio Mundial da Humanidade, esta
cadeia de montanhas tem uma formação geológica específica que além de atribuir
uma beleza única para a região também é habitat de algumas espécies de animais
que só são encontradas lá.
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Babuíno Gelada, só nas Simien. |
Por ter se tornado um Parque Nacional apenas em 1969, o turismo
ainda está se estabelecendo e a região conta com pouquíssima infraestrutura. Neste
sentido, para se fazer o trekking nas montanhas é necessário levar tudo: água, material
de camping, lenha para fogueira, equipamento de cozinha, alimentos e eventualmente
uma cabra para o jantar. O esquema é bem roots.
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Guia, Ivan, Alex, Chris, Will e Scout. Vem você também! |
E estas foram as palavras mágicas para que o Ivan – que como a Mon e
o Tato bem descreveram no nosso casamento, é mezzo McGiver mezzo
porta-voz de direitos humanos – ficasse alucinado para conhecer o lugar.
Depois de barganhar muito pelas inúmeras agências e agentes de
turismo em Gonder, finalmente conseguimos fechar um bom preço para a nossa
aventura: um trekking de 5 dias e 4 noites pelas montanhas. Ainda com alguns
resquícios da minha recente intoxicação alimentar, lá fomos nós com mais três
companheiros australianos – Chris, Alex e Will – desbravar mais de 60 km morro
acima e morro abaixo – com o detalhe do “morro” ser uma cadeia de montanhas com
mais de 4200m de altura.
Colocamos na mochila o estritamente necessário para passar os 5
dias, com especial atenção para roupas de frio (casaco de neve, gorro e segunda
pele) por conta dos conselhos enfáticos do nosso guia sobre as baixas
temperaturas a noite (chega a graus negativos). Também nos preparamos
psicologicamente para nosso último banho até a volta da montanha – o que tornou
a nécessaire bem mais leve, só com
escovas de dente, desodorante e papel higiênico (na minha situação, o bem mais
precioso de todos os itens da mochila).
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Chato o visual, não? |
Depois de duas horas de estrada de terra, chegamos em Debark onde
completamos as formalidades de permissões do parque e encontramos o nosso scout que iria nos acompanhar (com a sua
AK47) durante todo o percurso. O “kit”completo para embarcar nessa aventura é
composto sempre por um guia local, um cozinheiro, um “muleiro”e seus animais e
o amigo armado que descrevi acima. Tudo isso se organiza em Debark, no posto da
guarda florestal ou em Gonder através de um agente.
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Acampamento em Sankaber. Banheiro com vista! |
Lá foi o ponto de partida onde os meninos começaram o primeiro dia
de caminhada e eu tive de seguir de carro até Sankaber (o acampamento de
chegada), depois de alguns desentendimentos com o banheiro. Ivan e os
australianos percorreram 17km iniciais para se aclimatar nos 3.250 metros de
altitude e na trilha viram um dos animais típicos das Simiens: os babuínos gelada.
Nos outros países que percorremos da África a impressão geral que
fica sobre os babuínos é que se você tiver que escolher entre eles e um leão,
você fica com o leão. Ou seja: estes macacos são do mau.
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Esses são bonzinhos... |
É claro que isso se deve à inúmeros fatores dentre eles a redução do
habitat natural que faz com que eles entrem em conflito com os humanos e, pra
piorar, a crescente horda de turistas desmiolados que alimentam estes animais
selvagens – e depois ficam histéricos quando os macacos vêm com unhas e dentes
arrancar comida da sua mão.
Portanto é natural que nós, depois de dois meses atentos para as
placas “Cuidado com os babuínos”, desconfiássemos um pouco da amizade dos gelada. Qual não foi nossa surpresa ao
constatar que eles, são uns gentlemen.
E enormes. E poéticos. Além de terem um semblante quase que filosófico
acentuado pelos longos bigodes que dão um ar de sabedoria chinesa, eles são
cobertos por longos pêlos alourados e lisos que ficam esvoaçantes na brisa das
montanhas – imagem de fazer inveja a qualquer patricinha de escova e luzes.
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Detalhe do peito pelado. |
Para completar, uma das principais características destes símios é
que são românticos inexoráveis: têm um bleeding
heart (coração que sangra) estampado no meio do peito, parte exposta de uma
pele vermelho vibrante que compõe a estética da espécie. Enfim, lindos.
Ao final da tarde, quando os meninos chegaram no acampamento
começamos a sentir a temperatura cair drasticamente. Nossas barracas já estavam
montadas e fomos recepcionados por café, chá, bolachas e pipoca, depois de lavar
as mãos com água quentinha dentro de uma bacia – mimos que, ao longo do tempo,
fazem toda a diferença.
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Gabi muito bem guardada espera o resto da trupe com café e pipocas. |
Nossa primeira base ficava no alto de uma montanha onde pudemos ter
um prenúncio de toda a beleza e magnitude geológica que iríamos atravessar nos
próximos dias, iluminadas por um pôr do sol dourado.
Depois de algumas horas de descanso, fomos chamados para o jantar
que é preparado e servido dentro de uma estrutura de madeira circular, onde
sentamos nas muretas laterais e, em volta de uma fogueira, tivemos uma refeição
maravilhosa. Sopa de legumes com pãezinhos de entrada, seguido de macarrão com
molho vermelho e legumes refogados – em porções absurdamente generosas. Delícia!
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Jantar. |
No dia seguinte acordamos cedo e depois do café da manhã já com o
sanduba do almoço na mochila, fomos para a trilha com o objetivo de chegar em
Geech, nosso segundo acampamento. Este foi um dos dias que vimos as paisagens
mais bonitas, passando por campos maravilhosos, penhascos com flores da região
até chegar no ponto que tem um dos mirantes mais bonitos das montanhas.
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O sobe e desce tem suas recompensas. |
É dali que é possível ter a real dimensão da magnitude das Simiens,
do infinito de colinas que avança até perder de vista e encontra o horizonte numa
fusão suave do avermelhado das pedras com o azul do céu de inverno. É dali que
você tem certeza de estar no topo da África e se pergunta se é realmente
possível tanta beleza ou se tudo aquilo foi simplesmente pintado.
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Mais uma para a coleção "enfarta mãe". |
E só depois
de acostumar a vista com tanta imensidão é que você consegue reparar nos
detalhes. Um gavião que aproveita uma corrente de ar e voa na altura dos seus
olhos, alguns babuínos que gritam ao longe e lá no fundo, desafiando uma das
beiradas do vale, é possível ver a cachoeira de Jinbar despencando um filete de
água por 500 metros do penhasco. Dá vertigem de ouvir tanto silêncio.
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É alto, beeeem alto. |
Depois de 19 km percorridos finalmente chegamos ao acampamento a
3.600 metros de altitude. No caminho, cruzamos um rio, passamos por inúmeras vilas
que nos fizeram relativizar nossos conceitos de vida rural.
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Casa típica da montanha. |
Frequentemente
vimos crianças de 5 a 7 anos sozinhas nas montanhas, pastoreando gado, ovelhas
e/ou espantando famílias de babuínos gelada
com suas fundas numa determinação surpreendente.
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Agricultor colhe trigo na mão, literalmente. |
Quando nos viam, pediam uma caneta (o que doía, lá no fundo) e nós
respondíamos com alguma fruta do nosso almoço e, sempre, com as garrafas de
água vazias – item valioso pra quem não tem acesso a qualquer tipo de material
industrializado numa região onde água é escassa.
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Correria pra ver quem pegava a garrafa descartada. (foto Will) |
A noite, mesmo depois do jantar e da sopa de legumes milagrosa, o
frio não dava trégua. Ainda bem que Ivan e eu tivemos a presença de espírito de
levar roupas próprias para muito frio e, além disso, também levamos nossos
isolantes e sleeping bags. Para
dormirmos de forma “confortável” nós colocamos ‘segunda pele’, a roupa que
estávamos por cima, casaco de neve e gorro. Depois entrávamos no nosso sleeping e, em seguida, entrávamos no sleeping fornecido pelo trekking – e só
assim conseguíamos pegar no sono.
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Momento de descanso após almoço na trilha. (Foto Will) |
Todos os equipamentos e insumos são carregados no lombo de mulas que
seguem por trilas mais curtas e chegam nos acampamentos antes dos turistas. Por
isso, importante lembrar que a estrutura é mí-ni-ma, e normalmente se resume a
uma única construção circular que serve de cozinha e espaço para jantar. E só. Com
os banheiros não seria diferente, o que significa um casebre afastado, insuportavelmente
mal cheiroso, composto por um buraco no chão. Sem apoio, sem água, sem papel,
sem nada – e alguns infelizes ainda fazem questão de errar o buraco. A situação
definitivamente não é das mais agradáveis e há de se evocar muita, mas muita
iluminação espiritual para não dar uma surtada – ainda mais na minha condição.
Haja matinho amigo nessas horas...
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Acampamento visto do alto da montanha. |
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Mais um jantar. A fogueira foi um bom jeito de espantar o frio. |
No quarto dia tínhamos mais 21km pela frente em um dos trechos mais
extenuantes de todo o trekking. As paisagens sempre deslumbrantes nos
recompensavam e o cânion mudava de cor e forma a todo momento conforme a luz do
dia. No caminho cruzamos com uma família enorme de gelada com pelo menos 150 indivíduos e, além disso, vimos também o Walia
Ibex, uma espécie de veado/carneiro que só é encontrado nas Simiens e,
infelizmente, está próximo à extinção. Fizemos uma parada para almoço e
descanso no vale de Inatey, a 4.070 metros, e depois seguimos por mais quatro
horas até chegar no acampamento de Chennek, nosso objetivo final daquele dia.
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Cavalinho de carga no fim da tarde no acampamento de Chenek. |
Eu estava absolutamente exausta e, naquele dia, sabia que tinha
chegado no meu limite. Ainda me recuperando da intoxicação, sem conseguir comer
direito, tendo andado mais de 50km em três dias e com um frio que, nas últimas
horas da noite me fazia rezar para que o sol aparecesse, eu estava entregando
os pontos. Ivan, Chris, Alex e Will foram extremamente companheiros, o tempo
todo, disponibilizando todos os remédios e mandingas possíveis para tentar melhorar
a situação e me incentivando a seguir em frente.
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Momento relax na beira do abismo. |
No nosso último dia, o desafio derradeiro era conquistar o segundo
pico mais alto de toda a cadeia das Simien, o Monte Bwahit, a 4.430 metros do
nível do mar. Começamos a subida da trilha que a cada ponto ficava mais pesada
por conta da altitude, fazendo com que tivéssemos que parar aos poucos para
tomar fôlego e seguir em frente. Depois de algumas tentativas e com a voz
embargada reconheci para mim mesma e para o grupo que eu tinha chegado no meu
limite e que não alcançaria o cume. Depois de algumas palavras muito carinhosas
e com o orgulho ferido, insisti para que todos eles continuassem e comecei a
voltar sozinha para o acampamento.
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Flor típica da montanha. |
No meio do caminho, não aguentei, sentei na beirada da trilha e
chorei. Me sentia fraca e incapaz por não conseguir chegar ao objetivo final
mesmo depois de ter passado por tudo aquilo. Fiquei ali sentada um bom tempo
quando, num susto, ouço alguém descendo correndo pela trilha.
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Da séria "o melhor banco de praça do mundo". Vista impressionante. |
Ivan me deu uma
das maiores provas de amor e lições de vida que eu jamais poderia esperar numa
longa e paciente conversa. Fechamos o nosso trekking com uma tarde linda e
inesquecível com a certeza de que sim, meu amor, estaremos sempre juntos porque
isso é certo. E tudo valeu a pena. Obrigada.
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7 comentários:
O amor de vocês, nessa paisagem e nas que vocês verão e viverão, ficará muito mais forte!
Cuidem-se! e a foto do "enfarta mãe", enfarta a mim também! vcs são uns malucos apaixonantes e apaixonados!
Bjssss
Se cuida, Gabi!!! Sei que não há outra opção a não ser essa infecção passar... mas ... mais água, água de coco, e uma canjinha... Ok... Pipoca!!!!
oooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooohhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhwwwwwwwwwwwwwwwwwwwwwwwwmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm... snif!
Estou adorando acompanhar a aventura de vocês! Continuem aproveitando e compartilhando as experiências!
Espero que agora vá.....fotos lindas, relatos belos, frases encantadoras e visões sensacionais.
Esperamos vocês por aqui ansiosamente!!
Beijo ENORME!!
Olá!
Não conheço vcs, mas na semana que vem embarco para a Etiópia e, procurando saber algo mais sobre este país (que não fosse sobre fome e miséria), encontrei o blog de vcs. E quase desacreditei que alguns dias atrás vcs estavam na Etiópia e tiraram fotos belíssimas de lá! Muito feliz coincidência. Enfim, gostaria de saber um pouco da experiência de viagem de vcs, talvez dicas e impressões tbm, se puderem. Ficarei muito contente se puderem me escrever de volta, (joberezin@gmail.com) desde já agradeço e desejo uma boa viagem!!! Josie
Dá pra parar de me fazer chorar cada vez q abro esse blog?!
Gabizinha
Sempre, sempre abro o blog nos dias posteriores a sua postagem. Me fazem ter a certeza que tudo já está bem de novo.
A sinceridade de " cheguei no meu limite" não significa desistência e sim coragem.
Ivan
Sempre obrigada por ser VOCÊ!
beijo na testa
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