Depois que viajamos de trem noturno pela Shosholosa na África do
Sul, eu tinha um único objetivo com relação a este assunto: andar de trem de
novo – e quantas mais vezes pudesse. Foi por isso que quando planejamos nossa
travessia para o sul do Egito onde começaríamos a desbravar as tão esperadas
ruínas de umas das civilizações antigas mais incríveis que já existiram neste
planeta, o trem foi nossa primeiríssima opção.
Viajar sobre trilhos é um prazer indescritível. É daquele tipo de
deleite que, infelizmente e aos poucos, vai se perdendo no tempo. E você,
brasileiro de vinte e poucos anos que o mais próximo que já chegou de um comboio
foi no metrô de São Paulo, ao entrar num vagão a céu aberto já é acometido por um
saudosismo doído – mesmo que seja sua primeira vez. É como comer bala de coco
quente ou leitão a pururuca: você simplesmente não entende quando foi que o
mundo deixou de praticar este tipo de ritual. Andar de trem é a expressão
genuína do slow travel que, nos dias
de hoje, proporciona uma experiência única: viajar lentamente, em linha reta,
olhando a paisagem passar pela janela embalado por um balanço gentil.
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O Nilo corta Aswan e embeleza suas ilhas. |
Fomos na primeira classe do trem noturno que ia até Aswan e assim
que você pisa no vagão a sensação é de ser transportado para algumas décadas
atrás: serviços bons, na medida, e pessoas gentis aparentemente felizes com o
que fazem. Fomos recebidos na entrada por um senhor de terno que nos direcionou
à nossa cabine (que, a propósito, é muito melhor do que vários albergues que já
ficamos) e nos ambientou com o funcionamento da janela, do porta malas, das
luzes, sistema de som e toilette (sem
banheiro) do recinto. Depois de um belo jantar, já em trânsito, ele nos
perguntou se poderia montar as camas e, delírio: um beliche, com roupa de cama
limpinha, travesseiros e cobertor surgiu da parede. Depois de uma das melhores
noites da minha vida – nada se compara a dormir embalada pelo balanço do trem –
fomos acordados pelo mesmo senhor que, depois de um “bom dia” acompanhado do
café da manhã avisou que nos chamaria quando estivéssemos a 30 minutos do
destino final para que pudéssemos nos aprontar.
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Cara de quem acabou de acordar. Só pra abrir a janela e ver o Nilo... |
Saímos da estação caminhando na suposta direção da nossa pousada e
em poucos metros, entramos no souk de
Aswan.
O mercado é bem tradicional do mundo árabe, ainda que não tão sinuoso
considerando que tem apenas uma rua principal. Mas o estilo de interação é
praticamente o mesmo: qualquer turista que dá sopa o vendedor oferece 200% de
desconto e um chaveiro pra você levar para sua mãe. Uma delícia se você levar
na brincadeira, um inferno se você resolver se esquentar com o assédio.
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Souq de Swan. Só não vendem a mãe aqui.
A
barganha dos preços é uma arte zen-budista – da qual eu, para dizer o mínimo,
ainda não estava exatamente ambientada. Apenas para dar um exemplo, no auge da
minha irritação com o preço-que-nunca-é-o-preço resolvi comprar duzentos gramas
de amendoim - que em Aswan são especiais. Perguntei o valor já meio rosnando,
dizendo que queria o preço de verdade, e o maroto vendedor atrás do balcão teve
a infeliz ideia de me responder que eram 100 libras egípcias. Meu cenho
franzido e a cara de eu-vou-te-matar foram acompanhadas das seguintes palavras:
“O quêêêê? Isto é uma OFENÇA! O senhor
acha que eu não sei o quanto custa um amendoim?! (não fazia a mais pálida
ideia) Cem libras por um punhado de
a-men-do-im?!?!?!”. Ofensa é uma coisa muito séria no Egito e, depois de
pedir muitas desculpas, levei o pacote por 10 libras – e ainda achei que paguei
caro.
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Pinturas ainda preservadas nas ruínas de Aswan. |
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Ela de tranças, eu de bigode! |
Nosso grande objetivo com a vinda até Aswan era, na verdade,
conhecer Abu Simbel. Acordamos as 2h15 da madrugada e viajamos numa van por
três horas até chegar no destino final quando, pouco depois do sol nascer,
entramos no complexo arqueológico às margens do Lago Nasser.
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Os dois templos: Ramses II ao fundo e Nefertari à direita. |
E aí, dobrando um pequeno monte, surge o templo de Ramsés II. Daquelas
coisas que só vendo pra acreditar. De uma majestade que você se sente impróprio
para registrar tanta beleza e herança histórica. De uma arquitetura e precisão
que você chega a pensar em algum tipo de técnica divina que só seria possível há
mais de quatro mil anos, presente em cada cinzel dos artesãos que trabalharam
algo tão monumental.
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Os prisioneiros de Ramses II ao pé da estátua. |
São quatro faraós altivos, certos de sua realeza sublime,
observando impávidos para além-mar do imenso Nasser. Quanto mais perto você
chega, menor você se sente não apenas pela monstruosidade das dimensões das
imagens de calcário mas sim (e principalmente) porque eles não movem um músculo
para sequer notar a sua presença. Uma sensação de insignificância misturada com
paganismo por estar adentrando de forma tão prosaica um espaço tão sagrado.
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O vandalismo centenário de nomes inscritos nas imagens de Ramses II. |
Ainda meio atordoado, você entra no primeiro compartimento, chamado
de sala dos pilares porque é composta por oito representações do deus Osíris de
16 metros de altura. E eles têm cor: delineador preto no contorno dos olhos, um
vermelho-terra nos saiotes e os cinturões trazem uma mistura já um pouco
apagada de amarelo com azul. Depois você começa a notar as paredes e percebe
que de cima abaixo, nos 18 metros de comprimento, todas elas são esculpidas em
baixo relevo e pintadas, com as cores ainda vivas. É uma história em quadrinhos
de milhares de anos pintada por uma matiz que não deixa morrer a narrativa e
faz jus à memória de uma civilização magnífica.
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OK, é proibido tirar fotos dentro do templo, mas eu não aguentei... |
O segundo templo do complexo é dedicado à esposa preferida de Ramsés
II, Nefertari. Com dimensões bem mais comedidas do que o primeiro ele chama a
atenção pelos detalhes: é um dos únicos lugares onde a mulher aparece com a
mesma altura e/ou grau de importância do que o próprio faraó. Destinado à
Hathor, a deusa do amor e da beleza, este santuário tem uma estrutura terna e
sólida, mantendo-se fiel e paciente à sombra de Abu Simbel pelo tempo destinado
à eternidade.
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Gabi e seus três Ramses II e 1/2. |
No caminho de volta, pegamos um barquinho para visitar a Ilha de
Philae, que fica no coração do Nilo. Residência do Templo de Isis, é um
edifício bastante preservado e que ainda conta com a mística de estar insulado
e protegido pelo maior rio do mundo. O pátio de entrada é bastante
impressionante pelo colunado que encerra as delimitações da construção e traz
também as influências arquitetônicas da era Ptolomaica. Leões, obeliscos,
locais de sacrifício bem como representações de Hórus e Osíris adornam as
paredes do santuário que tem hieróglifos imortalizando sua história do chão ao
teto.
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Chegada à ilha de Philae. |
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Gabi em frente ao Templo de Isis. |
Patrimônios mundiais da UNESCO, estas são maravilhas do mundo antigo
e, para nosso maior espanto, também maravilhas do mundo moderno. Isto que vamos
contar é verdade, acreditem se quiser – ou deem um Google.
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O egiptólogo Ivan Contente decifra mais um hieróglifo. |
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Detalhe do pátio principal de Philae. |
Estes monumentos gigantescos, que demoraram mais de vinte anos para
serem construídos pelos egípcios foram desmontados e reconstruídos em pouco
mais de cinco anos, na década de 60. Explico: em 1959 o então Presidente do
Egito decidiu que era necessário construir uma barragem que inundaria boa parte
da região Núbia e, de quebra, sumiria com vários tesouros arqueológicos da
humanidade, dentre eles Abu Simbel e Philae.
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Pátio do Templo de Isis em Philae. |
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Coluna em formato de flor de papirus. |
Depois de uma enorme campanha internacional, a solução encontrada
foi de mover e remontar, pedra por pedra, estes dois santuários em lugares que
não fossem atingidos pela inundação da área. No caso de Abu Simbel, foram 200
metros mais a frente das margens do lago e Philae por sua vez foi “transferida”
para a ilha vizinha, de Agilkia.
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Colunas em Philae. |
E foi exatamente isso que se fez. Comandados pela UNESCO em uma mega
operação de mais de 40 milhões de dólares, estes monumentos foram recortados,
removidos e remontados milimetricamente em lugar seguro. Fato: o contrato das
empresas prestadoras de serviço previa que a maior alteração que poderia ter
entre o “original” e a remontagem era de, no máximo, 7 milímetros de variação.
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Fim do egiptólogo Ivan Contente após traduzir porcamente hieróglifos antigos. |
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Templo na ilha de Philae. |
Eles deram conta do recado e hoje, sem desconfiar de nada, a gente
vai lá visitar uma maravilha que poderia estar para sempre perdida nas
profundezas do lago. Combinação entre uma imensa mobilização para sensibilizar
o mundo pela necessidade de resguardar nossa herança cultural com uma boa dose
de milagres praticados pela engenharia antiga e moderna. Só poderia dar nisso: seres
humanos mais conscientes do seu patrimônio e da capacidade de intervenção para
preservar a sua história.
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