Cena 1. No checkin da SriLankan Airlines eles não estavam
encontrando a nossa reserva (um clássico para quem faz compra de bilhete aéreo
com cartão internacional) e por isso nos deram um upgrade para a Executiva. O melhor de tudo: fomos para o lounge da área VIP com direito a
sanduíche de cream cheese com salmão
defumado, champanhe, café expresso e internet wifi grátis. Quando chegou a hora
do embarque, um carrinho de golfe (!!) estava nos esperando na porta do salão e
nós fomos motorizados passando vergonha pelo aeroporto inteiro até chegarmos no
nosso portão de embarque.
Cena 2. Muitas, mas muitas pessoas saíram correndo assim que o trem
chegou na estação. Vendo que era o nosso número, nós embarcamos também, na
mesma correria e sentamos no primeiro banco que vimos. O cobrador, com cara de
pouquíssimos amigos, acorrentou a mala dele ao banco e veio pedir a nossa
passagem. Mostramos, ele fez uma cara de “esse não é lugar de vocês mas pode
ficar aí mesmo”. Tínhamos que trocar de trem em determinado momento. Chegamos
na estação perdidos e perguntamos para uma pessoa que, com uma cara assustada
nos falou: “aquele é o trem de vocês”. E a gente “qual, aquele que está
apitando?”. Ele “é esse mesmo, corre que ele vai sair!”. O nosso trem estava do
outro lado da plataforma e não tinha passarela para atravessar por cima. Nos
jogamos de mochilão e tudo no vão dos trens, atravessamos os trilhos correndo e
escalamos o vagão quase em movimento. Os dois suavam em bicas – de esforço e
tensão. Welcome to India!
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O sossego aliviado de quem conseguiu pegar o trem! |
A “Cena 1” foi a nossa saída do Sri Lanka. A “Cena 2” foi a nossa
chegada na Índia. Foi exatamente deste jeitinho que chegamos do aeroporto de
Trivandrum à primeira cidade que visitaríamos no sul do país, Allepey.
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Flor que nasce no meio dos canais de Allepey. |
Hoje,
relembrando este episódio, rimos só de pensar na cena de nós dois com mochilas
gigantes atravessando os trilhos insalubres dos milhares de trens que passam
enlouquecidos pela maior malha ferroviária do mundo. E quase que deu saudade.
Quase.
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Olhar brilhante da menina no aperto da balça. |
Foi assim, cheia de personalidade e sem nove-horas que a Índia nos
recebeu. Começaríamos a nossa peregrinação de 45 dias neste país pelo estado de
Kerala – que, conforme os próprios indianos fazem questão de ressaltar, não é
exatamente a Índia.
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Foi assim que Allepey, em Kerala, nos recebeu: só na paz. |
O ritmo calmo da região, sua natureza exuberante e quieta, a
lentidão dos rios e barcos que seguem seu caminho sem pressa somados com um
povo tranquilo e sorridente, fazem de Kerala uma exceção à regra indiana.
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Indiana foge do sol no calor do sul. |
Allepey, com pouco mais de 280 mil habitantes, foi a nossa primeira
parada e onde tivemos uma das experiências mais legais do país. A cidade é muito
conhecida pelos seus infinitos canais fluviais que, juntamente com uma flora
exuberante criam uma paisagem única. A não ser pelo centro da cidade, não há
ruas e tão pouco transporte terrestre: aqui, a vida gira em torno da água.
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Os canais mágicos de Allepey, somente explorados a bordo de uma canoa. |
É possível conhecer os canais com os variados tipos de orçamento,
exigência e impacto ambiental – que, é claro, resultam em experiências
completamente diferentes sobre o mesmo lugar. O pacote mais luxuoso envolve a
contratação de uma “casa barco”, com direito a quartos com ar condicionado,
chuveiro com água quente, refeições ocidentais e bebidas alcóolicas inclusas no
cardápio. Outra possibilidade é alugar um barco razoavelmente grande, a motor,
com uma ampla cobertura para proteger do sol e também bebidas disponíveis.
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Só na mordomia da "Veneza Indiana". |
Lá
no fim da “cadeia alimentar” do turismo de luxo está a tradicional canoa a
remo, amarrada com fibra de coco e com um pequeno telhadinho de palha trançada.
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Às margens dos canais, a vida passa tranquila. |
É claro que a gente escolheu esta última – e sem a menor sombra de
dúvida foi a melhor opção, recomendamos muito. Fomos com um remador que mal
falava inglês mas que tinha tamanha calma e delicadeza para mostrar cada
detalhe da vegetação e das curvas do rio que parecia que nós tínhamos parado no
tempo.
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Da pra embarcar nesse gigante que tem quarto com ar condicionado, mas e o charme? |
Primeiro pegamos a balsa comum para chegar até uma ilha onde
tomaríamos o café da manhã. Ali ele nos levou para uma pequena venda onde uma
garota tímida de uns 12 anos nos serviu uma panqueca de arroz com curry de
ervilha. Para tomar, chai masala,
para comer, os próprios dedos.
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O 1o governo eleito comunista do mundo foi em Kerala. |
Dali, partimos com ele para conhecer os canais mais estreitos, onde
a vida daquela gente acontece. E foi ali que começamos a perceber um fenômeno
lindo e cada vez mais raro nos dias de hoje: a convivência simbiótica,
equilibrada e respeitosa entre o ser humano e a natureza. A água ali é a vida.
É ali, naqueles canais, que a vida acontece, existe, corre. A vida das pessoas.
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Ele nos ofereceu o filhote de gato, você quer? |
A pouco mais de um metro da porta das casas, o rio passa. Ali é a
cozinha: para pescar o peixe, limpar, lavar os pratos, pegar a água. Ali é o
banheiro: para tomar banho, escovar os dentes, se limpar. Ali é a lavanderia:
para lavar e bater as roupas. Ali é também o quintal, onde as crianças brincam,
os cachorros buscam seus brinquedos, as vizinhas trocam fofocas. Ali, naquela
água, toda a vida acontece.
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Tudo acontece no rio. |
Já no meio da tarde, nosso remador nos convida para almoçar na casa
dele, ali perto. Diz que a mulher dele cozinha muito bem. Chegamos sorridentes
numa casinha simples, chão de terra batida e o terreno fechado por uma cerca de
hibiscos. Ali, algumas galinhas, paredes de tijolo aparente, um gato
desconfiado, uma mesa com cadeiras de plástico onde ele nos convida a sentar.
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Uma das melhores refeições que tivemos na India e certamente a mais autêntica. |
A esposa corta uma folha da bananeira do quintal e estende na nossa
frente, depois de termos lavado as mãos. Dali a pouco ela volta com cinco
potinhos diferentes que ela dispõe em montinhos separados na folha verde. Tomate
temperado, salada de beterraba com coco, curry de batata, dois peixinhos
fritos, arroz com leite de coco temperado e papadam (uma espécie de massinha
frita). Sem talheres – e a gente lambeu os dedos, literalmente.
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Gabi entretêm a dona da casa... |
Essa foi uma das melhores refeições que fizemos na Índia. Tudo
estava espetacularmente maravilhoso, bem temperado e com uma mistura de sabores
única. O casal era uma delícia, o inglês arranhado não foi uma barreira para
que pudéssemos ficar uma tarde inteira conversando e dando risada. Falamos
sobre a família de cada um, sobre o que comíamos no Brasil, aprendemos a falar
algumas palavras em malayalam e
trocamos endereços.
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Os nossos anfitriões. |
Naquele dia era aniversário do filho deles, de oito anos. A mãe
estava cozinhando a delícia principal da festa: uma espécie de arroz doce só
que com macarrão no lugar do arroz e muitas especiarias (cardamomo, canela,
cravo, rapadura, etc). Ela fez questão de nos trazer um pouco num copinho,
ainda quente, para que pudéssemos experimentar. Ma-ra-vi-lho-so!
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Grandes plantações de arroz cercam os canais. |
Quando fomos embora, pedimos para tirar uma foto com eles. Ela fez
questão de entrar na casa, trocar de roupa e me trazer um bindi vermelho – porque, afinal, eu sou uma mulher casada. Sorriso
solto de um dia incrível que passamos na casa de duas pessoas recém-conhecidas
como se fôssemos velhos amigos. Surpresas que só acontecem nesse país que exige
um coração aberto para tudo. Vem ni mim,
Índia!
FORT KOCHI
Ainda no Estado de Kerala, partimos para conhecer a cidade de Cochim,
especialmente a parte do Forte e de Mattancherry que contam com mais de 600
anos de história. Numa mistura de influências portuguesa, holandesa, britânicas
e indiana, o centro velho da cidade é um convite à se perder pelos casarões,
antigos fortes e lojas de antiguidades numa viagem pelo tempo.
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Detalhe de um café descoladex. |
Considerando que Allepey fica a apenas duas horas de Cochim,
resolvemos ir até lá de tuk-tuk – e foi aí que começamos a entender como as
estradas e principalmente como as pessoas dirigem na Índia desafia todas as
leis da física e regras de probabilidade.
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Pedras decoradas na praia. |
Era uma sexta-feira, um calor
infernal e ao meio dia o nosso motorista encostou o tuk-tuk no acostamento
com uma cara de aflição: as mesquitas
estavam chamando para a reza principal e ele precisava participar. Sem problema
nenhum, claro, vá lá que nós esperamos aqui – e o moço nos agradeceu milhares
de vezes em todas as línguas, mostrou fotos da família inteira e quase quis
converter o Ivan (além de querer ficar com o chapéu de Indiana Jones dele...).
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A herança portuguesa e holandesa deixou muitas igrejas no caminho... |
Quando chegamos a cidade estava estranhamente cheia e não
encontramos lugar para ficar. O mesmo amigo do tuk-tuk nos levou até uma área
residencial, numa casa de família que só tinha uma placa azul apagadinha na
porta: Beena Homestay. Ivan entrou
meio descrente, e eu fiquei do lado de fora já buscando uma alternativa até que
ele saiu dizendo: “é aqui que a gente fica!”.
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Tomei um susto ao ler a placa em português... |
Esse xuxuzinho escondido nada mais é do que a própria casa da
simpática Beena, uma mãe de família que junto com o marido gerencia cada
centímetro dos cinco quartos para hóspedes. Sabe quando você acaba de fazer
faxina em casa e ainda fica aquele cheirinho de limpeza? É assim que são as
suítes. Simples, com banheiro na medida, toalhas e lençóis branquinhos de dar
gosto. Pra completar, café da manhã e jantar inclusos na diária e feitos na
hora pela própria Beena – e não se atreva de tentar sair da casa de estômago
vazio que ela briga com você.
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Igreja onde foi enterrado Vasco da Gama (antes de levarem seus restos mortais pro Mosteiro dos Jeronimos). |
Só para dar um gostinho, numa manhã comemos uma
iguaria típica da culinária do sul da índia: macarrão de arroz cozido no vapor
com coco fresco ralado por cima. Super recomendado!
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Vendedor no "calçadão" da praia... |
Uma das principais atrações da cidade é Palácio de Mattancherry (não
pode tirar fotos) que tem uma história com jeitinho português que a gente
conhece bem. Construído em 1555 pelos nossos colonizadores, foi presenteado ao
Raja de Kochi como uma demonstração de “boa vontade” – leia-se manutenção dos
privilégios lusitanos sobre o comércio nas Índias.
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Tradicional rede de pesca chinesa em Kochi. |
As redes de pesca chinesas também são um dos atrativos da cidade,
ainda que hoje bastante turístico. Essas gigantescas parafernálias artesanais
são... redes de pesca chinesas – e os pescadores ficam subindo e descendo os
cabos, convidando os turistas a tirarem fotos para depois cobrarem uma
caixinha.
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Gabi em frente à Sinagoga de Kochi. |
Cochim conta com um bairro judeu antiquíssimo, que ainda mantêm
várias casas com a estrela de David no batente e nomes judeus nas ruas.
No
coração desta parte da cidade, fica a Sinagoga Pardesi que data de 1568 e apesar
de ter sido parcialmente destruída pelos Portugueses, foi posteriormente
recuperada pelos Holandeses que adicionaram um rico trabalho de azulejos e
candelabros. Infelizmente não pudemos entrar porque era shabbath. Fué, fué, fué.
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No mesmo bairro, vale a pena passear pelas infinitas lojinhas de
souvenir, roupas e especiarias – tudo para turistas – mas, acima de tudo, é
necessário entrar nas lojas de antiguidades. Objetos maravilhosos, que vão
desde um cavalinho de criança do século passado até uma imensa canoa de corrida
com capacidade para mais de cem remadores podem ser encontrados ali. Uma
delícia para perder tempo numa tarde gostosa.
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Loja de antiguidades. |
A cidade é destino de veraneio dos indianos e por isso guarda um ar
interiorano-descolado. Ali é possível encontrar desde bistrôs franceses até
bancas de rua vendendo o melhor da culinária do sul da Índia.
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Gabi faz pose em meio a uma das inúmeras lojas de antigüidade. |
Vários cafés
despretensiosamente arrumadinhos pipocam nas ruas estreitas e movimentadas,
junto com lojas de roupas hippie chique que vendem também caderninhos de
material reciclado.
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Loja descoladex. |
Talvez por agregar estas características, justamente naquela semana
Cochim estavam recebendo a primeira Bienal de Arte Contemporânea da Índia. O
lugar escolhido não poderia ter sido melhor: um estaleiro abandonado enorme,
cheio de galpões desativados e espaços abertos que serviam perfeitamente à
proposta da exposição. E quem estava lá como apoiador oficial: Governo Federal
do Brasil – Ministério da Cultura. Maior orgulho!
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Instalação da I Bienal de Arte da India. |
Deixamos o estado de Kerala numa paz e tranquilidade propícia para
nossa chegada a este país gigante. Sem dúvida foi um dos lugares que mais
gostamos de toda a Índia e voltaríamos para lá num piscar de olhos –
principalmente para aproveitar um arquipélago paradisíaco e recém aberto ao
público que tem ali perto e comer a comida da Beena! Mas essa terá que ser uma
próxima viagem.
Um comentário:
Queridos
Que descrição languida,suave e encantadora.
As fotos conseguem transmitir serenidade,paz e pureza de sentimentos.
Quanta delicadeza.
Sempre muita saudades mas um orgulho imenso de vê-los neste local me troxe paz de espírito.obrigada.
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