Depois de já termos feito algumas andanças muitas questões e reflexões não saem de nossas cabeças. Aqui, deixaremos algumas delas, já nos permitindo impressões bastante pessoais sobre o mundo que está a nossa volta.
Critiquem, comentem e compartilhem conosco um pouco dessas histórias.
A VIAGEM NÃO ACABA
[reflexões sobre o espírito do viajante]
"… A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: ‘Não há mais que ver’, sabia que não era assim. O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.”
José Saramago, em Viagem a
Portugal
Saramago é autor da Gabi, não meu. Não que eu não aprecie sua
literatura mas é a baixinha quem gosta das frases intermináveis e parágrafos
longos, quase sempre sem vírgula. Acho que gosto mais da figura do autor
português do que de suas obras. Para mim, é o modo que ele via o mundo que o
fez – e faz, posto que é imortal em seu legado - uma das figuras mais
interessantes da literatura.
O trecho acima do Viagem a
Portugal, no entanto, me tocou nesse momento de finzinho de viagem. Escrevo
num sábado de sol, em plena ilha de Bali, Indonésia, olhando a “outra metade”
lagartear ao sol, à beira da piscina do hotel. Lendo, como sempre.
A depressão-de-fim-de-viagem que nos acomete era um sintoma
esperado. Foram quase trezentos dias até agora de uma travessia sem comparações
nas nossas jovens vidas. Logo, talvez seja até normal esse momento mais
reflexivo.
Dizer que esse tempo de pura e simples imersão mudou nossa
perspectiva de praticamente tudo, seria, no mínimo, o óbvio. Do alto do
Annapurna o mundo é bastante diferente do que no fundo do Mar Vermelho. Porém,
a obviedade da afirmação acima esconde algumas nuances que não dependem
necessariamente da experiência trazida pelo caminho percorrido, mas sim de como
esse mesmo caminho modela o seu modo de enxergar o entorno. Não, não é preciso
dar a volta ao mundo. Basta existir. A vida nos transporta.
Dessa forma, devo concordar com o autor da Gabi: “a viagem não acaba
nunca”.
Muitos amigos viajantes – de alma ou de chão -, repetem como mantra
que viajar é um estado de espírito. O ato em si, é mera materialização e
conquista do que anteriormente era só ideia.
Me sinto um pouco assim. Viajar sempre foi primordialmente uma ideia
e não um plano. Essa volta ao mundo, os dez meses que “tiramos” do resto de
nossas vidas para percorrer esse trajeto nada mais é que uma pequena fração de
tempo em que resolvemos dar vida aos nossos sonhos – à nossa essência.
É como se olhasse para essa vida de sonhos, idealizações e vontades
e dissesse: “PARLA!” E, então, esse conjunto de sentimentos difusos e
expectativas se levantou e respondeu “vamos”?
Foram só dez meses, só vinte e poucos países e o acúmulo de
sensações, cheiros, visões que formam essa experiência sobrecarregam a minha
cabeça de um jeito que fica difícil dar vasão ou explicar por meio de palavras.
Falemos de experiências.
Ainda no Egito, na turística Luxor, encontramos um casal de
americanos na faixa dos setenta anos que com pouco tempo de conversa se
apaixonou por nós e vice-versa.
Ambos aposentados, vivendo no campo no estado de Washington,
disseram que viajavam pelo menos três meses por ano, durante o frio do inverno do
norte dos Estados Unidos. Não eram ricos (ambos aposentados do sistema público
– ele professor e ela enfermeira), muito menos excêntricos/malucos (são tantos
que encontramos pelo caminho que é bom diferenciar!), apenas tinham na alma o
gosto por viajar. Nos contaram saudosos que em 1970 tinham feito uma volta ao
mundo, com direito a ver a final da Copa no Brasil, em algum boteco de estrada
entre São Paulo e Bahia.
Em determinado momento de uma caminhada no meio do bazar Peter me
espiou com olhos mareados e disse: “vai ser difícil explicar para os outros o
que é isso que vocês estão fazendo”. O olhar melancólico e carregado de
saudades de sua própria viagem mostravam a cumplicidade de alguém que havia
achado um semelhante.
No momento não consegui compreender totalmente o que ele queria
dizer. Talvez pela insipiência de nossa experiência de vida, ou da própria
viagem que apenas somava três meses de jornada. Hoje, aqui, já no fim dessa
primeira grande travessia, consigo lembrar dos olhos úmidos do bom velhinho e
entender plenamente o que ele quis dizer.
Esse casal de amigos improváveis mostrou que, de fato, “a viagem não
acaba nunca”. A nossa, com todos os trens, ônibus precários, visitas de gente
mais que querida, horas intermináveis em aeroportos, pousadas fuleiras,
piscinas de hotel, mergulhos, escaladas e uma barba enorme, na verdade, está
longe de terminar.
O viajante Saramago acabou. Sua viagem continua nos livros, história
que deixou e nos lugares que esteve e que divide conosco, o resto da
humanidade.
Nosso blog, nossos e-mails, nossas conversas
passadas e que ainda virão com amigos e família formam nossa narrativa, nosso
modo de viajar mais uma vez e trazer conosco todos que querem compartilhar
desse mundo e sua gente que devem ser vistos, ouvidos - sentidos de todos os
meios possíveis. Isso é ser humano. Isso é viajar.
Ivan C. Marques
ANIVERSÁRIO DE "MULHERZINHA", SEM CULPA!
Nos meus vinte e sete anos eu iria completar exatos cento e oitenta
dias de viagem, tendo passado por dez países diferentes que se espalham pela costa
leste africana, oriente médio e Ásia do sul. Naquele mesmo vinte e dois de
abril, fariam precisamente quarenta dias que estávamos viajando pela Índia – e
sim, eu confesso que estava cansada.
Estava cansada de usar as mesmas três mudas de “roupas de guerra” de
todo santo dia. Estava cansada de ter que me contentar com os banheiros
insalubres de todos os lugares – daqueles que você fica pensando se não seria
melhor ter ido no matinho ali ao lado. Estava cansada de ter que estocar
absorvente e papel higiênico porque você nunca sabe quando vai encontrar estes
dois itens essenciais que, neste país, só encontra-se nas grandes cidades.
Eu sempre fui aventureira, sempre joguei bola com os meninos e,
quando tinha uns oito anos, apavorava a minha mãe quando pedia para o
cabelereiro cortar o cabelo bem curtinho, acima da nuca, para não atrapalhar na
hora do pega-pega. Nos anos mais recentes, fiz as pazes (ainda faço, acredito),
com o meu lado feminino, explorando todas as potencialidades e re-invenções que
são possíveis ao ser mulher. Deixei o cabelo crescer até a metade das costas
para o meu casamento e, no dia seguinte, não pensei duas vezes em cortá-lo bem
curtinho pra aproveitar ao máximo a lua de mel – essa aqui, de volta ao mundo.
O fato é que essa construção do feminino, para mim, sempre foi um
conflito. E num mundo cada vez mais machista (inclusive por posturas muitas
vezes assumidas pelas próprias mulheres), eu fiz questão de travar a minha
própria batalha para conquistar espaços que eu queria pra mim, por direito,
independente de gênero. Jogar bola no recreio, treinar handball com os meninos,
trabalhar em lugares majoritariamente dominados por homens, discutir com um
professor da ciência política que diz que feminismo é coisa da antropologia.
Mas o mais difícil mesmo pra mim foi admitir, sem culpa, que naquele
aniversário tudo o que eu queria era um dia fora da viagem, entre mulheres e só
com mulheres, fazendo compras, olhando coisas bacanas, tomando café e comendo
cupcakes. E depois de ter enfrentando tanta coisa, ter conquistado territórios
tão inóspitos nesta (e em tantas outras) viagens da vida, que isso não era um
retrocesso, que eu não estava me traindo, que Simone de Beauvoir não estaria se
revirando no túmulo.
E foi exatamente isso que fiz, com uma sensação de liberdade que só
pôde ser proporcionada pela presença de duas pessoas e um companheiro compreensivos
que não julgaram este meu rompante. Logo de manhã, corri para o quarto da Má e
Fá onde fui pedir os parabéns, ganhei presentes indianos maravilhosos e
pesquisamos a rua mais legal de compras em Delhi. Elas escolheram uma roupa pra
mim, peguei perfume e batom emprestados e lá fomos nós – Ivan seguiu junto,
numa paciência budista.
Passamos o dia todo experimentando sapatos, brincos, bolsas e palpitando
uma na escolha da outra enquanto resolvíamos todos os problemas da vida de um
jeito que só as mulheres são capazes. Descobrimos mais uma loja da Anokhi,
desta vez maior, onde as três tiveram um novo surto de compras – e quando o
fantasma da culpa começou a me assombrar as duas falavam: “hoje é seu dia, é só
uma vez por ano, se joga!”. E eu me joguei.
Tive direito a paradinha de descanso para cantar parabéns com um
cupcake de redvelvet e bolo triplo de chocolate. A noite, as duas me montaram
com as roupas recém compradas, Fá me emprestou um perfume de viagem e a Má
tirou minha sobrancelha. Eu roubei uma sandália nova de alguma delas, ganhei de
presente um colar lindíssimo do Ivan e lá fomos nós para o restaurante mais
chique de Delhi tomar vinho e comer pratos ocidentais. E eu me senti completa.
No dia seguinte elas iriam embarcar de volta para o Brasil – e acho
que não sabem o quanto me fizeram bem com a alegria e companheirismo
necessários neste meu aniversário. Depois de um dia de princesa eu voltei às
minhas velhas roupas de guerra, só que agora mais feliz, refeita, pelo conforto
e senso de aventura. Nesses vinte e sete, importante foi saber que nem a bota
suja de trekking e nem o batom vermelho me definem – mas não deixam de ser,
ambos, igualmente importantes pra mim. Talvez esse seja o meu feminismo: a
liberdade de escolher ser mulher, do jeito e quando eu quiser.
Gabi Gambi
MAS QUAL É O MURO DAS LAMENTAÇÕES?
[argumentos sobre um muro e as pessoas que vivem em volta dele]
Desde a criação do estado de Israel, em maio de 1948, o conflito
entre israelenses e palestinos toma conta dos noticiários do mundo todo.
A imagem imediata do conflito é de uma guerra travada entre judeus e
muçulmanos. No entanto, há outras partes envolvidas que sofrem o efeito
colateral dessa disputa que está longe de chegar a uma solução.
Em visita à Belém – local de peregrinação de judeus, muçulmanos e cristãos
- pude presenciar algumas situações que definem a vida na fronteira entre
Israel e os Territórios Palestinos e contam a angústia de não pertencer a
nenhum dos dois lados da contenda.
É o caso de Claire Anastas, cristã palestina que vive em Belém desde
que nasceu e tem uma loja de souvenires religiosos onde há alguns anos era a
rua mais movimentada da cidade. Orgulhosa por ter nascido e vivido na cidade
natal de Jesus, ela hoje luta para sobreviver em meio a um conflito que
estrangula seu futuro.
O drama da família Anastas começou em 2002 com a construção do muro
israelense que divide o país dos Territórios Palestinos. Seu prédio de três
andares que abriga sua casa, loja e a oficina mecânica de seu marido, foi cercado
por três lados pela barreira de concreto de vinte metros de altura, bloqueando
a rua e transformando o que antes era uma via crucial de Belém em um beco
estreito e sem saída. “Só não fecharam a fachada porque fomos salvos pelos
dutos do esgoto que passam embaixo da rua. Eles nos mandaram abrir uma porta na
casa do vizinho para que pudéssemos sair pelo outro lado”.
Em pouco tempo a oficina de seu marido faliu e sua loja começou a
não mais receber turistas. “Eu vendia muito para cristãos que vinham à igreja
da natividade, mas também para muçulmanos e muitos judeus ortodoxos” revelou
Claire ao lembrar com lágrimas nos olhos o tempo pré-muro.
“Aliás, tínhamos muitos amigos judeus que ficavam horas na minha
loja enquanto meu marido consertava seus carros. Hoje estão todos do outro lado
do muro, impedidos de vir pro lado de cá”.
O muro, além de controlar o acesso de palestinos (muçulmanos ou
cristãos) a Israel, também impede que israelenses cruzem para o lado palestino.
Pior que o golpe financeiro que levou a família Anastas à falência
foi o trauma físico e psicológico causado pela convivência com forças militares
israelenses a menos de 5 metros de distância. “Somos impedidos de subir na laje
de nossa casa, temos que pedir permissão por escrito ao Exército de Israel para
subir a escada. Eles temem que joguemos alguma coisa do outro lado. Toda vez
que preciso subir no teto cinco ou seis miras laser aparecem no meu peito, são
os soldados apontando suas armas contra mim, quando só preciso consertar a
caixa d’água”. Essa situação cotidiana piora quando é seu marido a subir na
laje. “Só eu posso subir, pois quando meu marido ia, eles chegavam a atirar”.
A violência é tão insidiosa que já
ocorreram várias invasões do exército em sua
casa no meio da noite por suspeita de ataque ao lado israelense. Por estar
literalmente colada ao muro, a casa de Claire tem sido o ponto preferido dos
soldados para inspeção e controle da fronteira “eles batem na porta no meio da
noite. Se não atendo, correndo escada abaixo, antes da terceira batida, eles
arrebentam a porta”.
Seus filhos imploram para que eles deixem o país e a vida cercada
pelos muros de Israel, mas ela resiste: “Meus filhos pedem para que mudemos
para outro país, mas eu acredito que temos que fazer algo especial aqui” diz
Claire que em sua loja vende produtos artesanais de mulheres palestinas. Seu
negócio sobrevive de vendas on-line e dos taxis que levam os turistas até ali,
num beco escondido em troca de comissões. Claire ainda recebe doações de ONGs
internacionais para promover a situação de vida nas sombras do muro e do
conflito, o que ela faz com altivez e perseverança inquebrantável.
Ao pedir ajuda às autoridades palestinas, diz que não houve qualquer
atenção, muito menos da parte israelense. “Eu não sou muçulmana nem judia,
porque eles iriam me ajudar?”.
Desde o começo do conflito israelense-palestino Belém sofreu grandes
danos por situar-se muito próxima de Jerusalém, um dos maiores impasses dessa
disputa. Com tradicional maioria muçulmana e cristã a cidade é considerada um
ponto de ameaça aos judeus de Jerusalém. Durante os anos 90 sofreu diversos
atentados suicidas de homens-bomba vindos de Belém, como contou o Embaixador de
Israel nos EUA Michael Oren ao programa jornalístico 60 minutes. Ao comentar sobre as condições de vida da família
Anastas após a instalação do muro para conter os terroristas ele justificou:
“lamentamos a inconveniência causada pela instalação das precauções de
segurança. Mas a inconveniência para alguns representa a nossa
sobrevivência...”.
Ainda apresentando sua defesa, Oren mostrou que os atentados
terroristas em Jerusalém caíram 90% após a construção do muro.
Hoje Belém padece com a falta de peregrinos. O taxista muçulmano
Mohamed que me levou à loja de Claire em busca de sua comissão comenta que os check points e mesmo o muro diminuiu
muito a quantidade de turistas que visitam a cidade. “Muitos vinham e ficavam
alguns dias, para visitar com calma os lugares sagrados. Hoje quando vem,
visitam a Igreja da Natividade e voltam correndo pra Jerusalém, como se Belém fosse
uma cidade perigosa”.
O muro, por outro lado, virou mais um ponto turístico que ele faz
questão de levar todos os visitantes. Ao mostrar com orgulho as obras dos
artistas locais e internacionais que grafitaram o muro do lado palestino,
Mohamed contou que tem um filho preso por conspirar contra Israel: “ele estava
na faculdade e foi preso. Vieram no meio da noite e o levaram”. Quando indagado
sobre o motivo da prisão ele desconversa com uma frase genérica: “são os
israelenses, eles não querem que o povo palestino se desenvolva...”.
Ao sair do taxi, lanço uma pergunta final ao inflamado Mohamed: “Algum
dia vai haver paz?” Ele espera três segundos em silêncio pensando no que vai
dizer e, já confortável comigo depois de um dia todo juntos, responde confiante:
“Nunca! Os Israelenses não aceitam as terras demarcadas pelos tratados de 1967,
eles querem sempre mais. Além disso, nós (palestinos) nunca vamos entregar
Jerusalém!”.
E a guerra continua.
Ivan C. Marques
MINHA MÃE MOCHILEIRA
Minha mãe é uma dessas empresárias bem sucedidas que todo mundo
quando conhece pela primeira vez fala: “nossa, como sua mãe é elegante”. Ela
está sempre bem vestida, nos trinques, fazendo suas combinações inusitadas de
tailleur com um mantón de bailarina flamenca.
Ela adora broches, principalmente os de macasita, que alegram a lapela do
terninho ou finalizam um lenço no pescoço.
Não usa calça, nunca usou, talvez porque instintivamente soubesse
que seria um desperdício para o par de pernas que faz sucesso até hoje. Uma das
minhas primeiras memórias de infância é de estar sentada em cima da pia do
banheiro enquanto assistia minha mãe se maquiar (ou “se pintar” como ela gosta
dizer) num ritual que para mim era mágico.
Mas ela sempre teve um lado hippie
recatado. Ou melhor, latente, pronto para estrear no mundo mas depois de tanto
tempo reprimido, acabou ficando tímido, ali guardado. Um observador mais atento
pode perceber estas pistas nos detalhes: um cabelo descuidadamente preso no
alto da cabeça por um palito chinês, um colar quase esquisito de conchas e
folhas, um brinco de penas ou até um sapato (de salto, sempre) mais colorido e
com borboletinhas.
Meu pai é um cara que sempre soube disso – e talvez esse seja um
daqueles mistérios silenciosos do casamento deles. Ele também é um cara muito
descolado, motoqueiro já há tanto tempo que talvez tenha se esquecido do quanto
isso faz dele uma pessoa altamente apaixonada por aventura. Eu adorava contar
para os meus amigos que meu pai andava de moto, era o máximo. (Aliás, eu fui
nomeada Gabriela em homenagem a primeira moto dele, também Gabriela, que por
sua vez foi inspirada na inesquecível personagem de Sônia Braga).
O fato é que, nos últimos tempos, eles estão começando a aproveitar
sem culpa a melhor fase da vida. Dizem que quando você é novo você tem saúde,
tem tempo mas não tem dinheiro; quando é adulto tem saúde, tem dinheiro mas não
tem tempo; e quando fica mais velho, tem tempo, tem dinheiro mas não tem saúde.
Com muito suor meus pais conseguiram chegar no ponto ótimo desta difícil equação
e hoje estão se dedicando a explorar e aproveitar a vida, cada um a sua
maneira.
No início do ano meu pai foi fazer uma viagem de moto pelo deserto
do Atacama, no Chile. No mesmo período, convidamos minha mãe para vir nos
visitar no meio da nossa aventura de volta ao mundo. Ela, com menos de dez dias
de aviso prévio, prontamente se despencou do Brasil para explorar Israel e Jordânia
com a gente. Nossa única exigência para ela foi: tem que vir de mochilão.
Eu já sabia que a minha mãe era aventureira mas em pouco tempo ela
se revelou a personificação feminina da Mochileira das Galáxias. Quase não
acreditei quando a vi chegar no aeroporto, de calça jeans e camiseta, bota nos
pés e gorrinho colorido de pom-pom na cabeça – tanto que não a reconhecemos,
foi ela que teve que nos encontrar. Fiz uma lista tão espartana para prepará-la
para o autêntico ritmo de mochileira que assim que ela chegou foi logo avisando
que sua mochila estava tão leve que o Ivan nem precisava ajudar.
Assim que chegamos em Israel ela estava animadíssima para ficar no
seu primeiro albergue – sim, nós levamos minha mãe para um albergue. O quarto
era privado mas o banheiro, compartilhado, e com o mesmo desprendimento que eu
imagino que a minha mãe tomava banho no pensionato do PUC-Campinas, ela se
jogou no chuveiro meio capenga de Tel Aviv.
Seguindo a nossa rotina de andar até a pedir arrego, a minha mãe nos
acompanhava firme e forte (muitas vezes mais forte do que eu) e, depois de
alguns dias já na pegada, ia na frente desbravando os caminhos e dando risada
da total falta de direção minha e dela – principalmente quando a gente se
perdia. O legal mesmo foi quando ela descobriu que todas as nossas ideias de
roteiros e lugares para visitar vinham do maravilhoso mundo do Lonely Planet. Aí
não deu outra: toda noite ela estudava o guia de cabo a rabo, principalmente as
partes referente a cultura e história do país para, no dia seguinte, começar
com “vocês sabiam que...”.
Introduzimos minha mãe ao maravilhoso mundo das comidas de rua e, em
pouco tempo, ela estava tão apaixonada por falafel
que ela mesma disparava: “o que vocês acham da gente comer um falafinho hoje a noite?”. Agora, vinho
sempre tinha que ter (mesmo que fosse o mais barato) e depois de se aventurar
pelos mercados de rua discutindo preços, barganhando com os vendedores e
escolhendo os melhores produtos, fizemos pic-nics maravilhosos dentro do
quarto.
Aliás, esse é outro um dom da minha mãe: ela se comunica com
qualquer pessoa em qualquer língua. É sério. Aos cinquenta anos e depois de uma
experiência traumática de Cultura Inglesa na infância, minha mãe resolveu
voltar a aprender inglês – com colegas de classe mais novos que os seus filhos.
E hoje ela lê tudo, entende tudo e fala tudo, dando risada da própria enrolation as vezes. Mas mais que isso,
ela tem uma capacidade incrível de entender o que as pessoas estão dizendo em
hebraico, árabe, alemão ou qualquer outra língua – ela se vira. Enquanto Ivan e
eu ainda estávamos tentando emplacar um inglês com sotaque local, ela já tinha conversado
com alguém e sabia, antes que nós dois, a direção, o nome certo e os preços do
que estávamos buscando. E também toda a história da família daquela pessoa, já
tinha até convidado para visita-la no Brasil.
Gabi Gambi
PORQUE TUDO ISSO VALE A PENA.
[Um (re)encontro com os
gorilas das montanhas]
E de repente eu tinha nove pra dez anos outra vez. Era o começo dos
anos 90, e o agora dinossáuricovideocassete era o suprassumo das posses
domésticas da classe média paulistana.
De dentro da Belina ou Del Rey (não me lembro mais), ou algum outro
carro genérico da finada Auto-Latina, a Avenida Rebouças se mostrava uma
imensidão selvagem demais para ser explorada sozinho e o programa favorito da
família era decidir o que alugar na VideoFactory para animar o fim de semana.
Fim de semana que seguia uma rotina previsível: filmes, encontro com primos (na
nossa casa ou no tio Valdo), deixar meu pai na rodoviária no domingo a noite
para depois dormir no quarto da minha mãe – uma concessão para aplacar a
ausência do pai que dava aulas fora de São Paulo.
Dentro da locadora, uma casa antiga adaptada para a nova função, uma
miríade de mil-histórias para escolher, o paraíso para uma criança imaginativa
como eu.
A primeira parada era sempre na mesma estante. Minha mania de locar
sempre o mesmo filme causava irritação (legítima, reconheço) aos meus país e
irmão, sempre sugerindo novas histórias e possibilidades.
Mas não, eu queria ver, pela enésima vez, “Na Montanha dos Gorilas”(Gorillas in theMist, no título original
que a “versão brasileira” teimava em
alterar). Para variar o tema, meus pais até alugaram o documentário original
da NationalGeographic – que é sensacional, diga-se de passagem.
Até hoje ainda não entendo porque a história real da pesquisadora
Diane Fossey e seus estudos sobre os os gorilas das montanhas me fascinava
tanto, a ponto de querer revê-la sempre que possível. Isso não combinava com um
garoto que preferia castelos, cavaleiros e espadas à animais selvagens. Nunca
fui fã do Animal Planet, ou mesmo do Planeta Terra da TV Cultura. Pelo
contrário, achava chato pra cacete!
Só sei que esse filme, e essa misteriosa floresta impenetrável,
fizeram parte do imaginário dessa minha infância saudável na floresta de pedra
paulistana.
E assim, como eu disse, eu tinha nove anos de novo. Só que dessa vez
eu não estava no banco de traz da Belina, mas sim segurando um cajado e
espantando os pernilongos da cara no meio da “Floresta Impenetrável de Bwindi”,
rastreando os animais mágicos! Passando por ninhos imensos de mato amassado –
cama na noite anterior para um deles –, fezes frescas, e um cheiro acre
crescente. E eu sabia que me aproximava
cada vez mais deles.
Um aceno do ranger que seguia na frente e um golpe de facão na mata
fechada descortinou a imagem que ficará pra sempre retida na retina e na
memória: um animal fabuloso, um silverback
enorme se revelava diante de mim. Sentado pacificamente, comendo tranquilo suas
folhas.
Como quem avalia um ser inferior, ele virou a cabeça, olhou na
direção de nosso grupo e voltou a mastigar, não se importando com nossa
insignificante presença.
Essa foi a permissão para aparecerem mais dois, três, cinco, sete
animais, igualmente gigantes em sua natureza plena, vigorosa, dona do lugar. O
chefe havia permitido que ficássemos ali, diante de sua família – os Bitukura.
No entanto, um deles em especial, me olhava profundamente. Seu nome
era Karamuzi – “O Juiz”. Era o indivíduo mais velho da família e o antigo
líder, destituído pelo filho no comando do grupo quando a idade começou a pesar.
O olhar penetrante desse primata gigante me paralisou em meio a
tanta reminiscência. Seu olhar agudo e doce, reto na alma de quem veio de tão
longe, me trouxe de volta aos 31, conectando os longos anos que separavam o
garoto em frente à estante da VideoFactory
e o barbado viajante de hoje.
A paralisia foi tamanha que não conseguia pensar em tirar fotos,
apesar do peso da câmera em meu pescoço. O momento era de contemplação, de
respeito mútuo, de puro sublime. Não havia mais calor, mosquitos ou cheiro ruim
que incomodassem. Era a conexão máxima entre homem e animal. Experiência
espiritual materializada no meio de uma ribanceira africana, na famosa Floresta
Impenetrável.
Ivan C. Marques
SARDINHAS MEDITATIVAS
[o
processo meditativo forçado pelo meio de transporte popular africano]
![]() |
Maputo a Tofo: 9h de viagem. Você agüentaria? |
Na África do Sul são chamadas de minitaxis,
em Moçambique são chapas, na Tanzânia
recebem o nome de dallah-dallah e no
Brasil são tradicionalmente conhecidas por “LOTAÇÃO”. Apesar de não terem nada
de público no transporte – tendo em vista que são chefiadas por alguns poucos
particulares que ditam todas as regras da frota, inclusive preço, itinerário,
manutenção, etc – são o principal meio de locomoção da população trabalhadora
nas grandes cidades.
Consistem basicamente em uma van em estado bastante precário,
normalmente refugo de produção chinesa, onde há assentos para aproximadamente
16 pessoas. O motorista é um personagem normalmente não muito amigável, que
dirige de forma enlouquecida pelas ruas da metrópole com uma soberba de quem
sabe que têm a preferência, independente de onde esteja – e ai de quem diga
alguma coisa. Bagagem é um item que não faz parte do pacote e você, mochileiro
inconveniente, vai ser recebido com olhares acusadores que farão com que sua
tralha toda seja restrita ao seu colo – independente do tempo e do aperto da
viagem.
Para nós, ocidentais eurocêntricos aspirantes ao mundo
desenvolvidos, a experiência é, no mínimo, um desafio a todas as regras de
convivência social e pública que estejamos acostumados. A começar pelo horário:
as lotações só saem quando elas devem sair, ou seja, quando estão absolutamente
lotadas. Isso significa que você chega no lugar que sai o seu carro – porque o
local de saída e chegada delas também faz parte de um código silencioso
indecifrável para você, turista – entra nele pra garantir o seu assento e fica
lá esperando até que cheguem os outros 15 seres humanos que coincidentemente
vão para o mesmo destino. Isso, é claro, pode demorar de 20 minutos a 2 horas e
meia, a depender do humor do motorista. E a você cabe, tão e simplesmente,
resignar-se à espera.
Os itens que as pessoas carregam nestas viagens são uma imersão
antropológica intensiva na cultura local. Tecidos de metro, malas de viagem,
peixe e camarão secos, bebês de todas as idades, esteiras de dormir, sacos de
farinha, laranjas, batatas, enxadas, ferramentas e uma prancha de surf de algum
americano desavisado que aí sim, você tem vontade de matar. Tudo isso embaixo
dos seus pés, no seu colo, sobre a sua cabeça ou equilibrando do lado de fora, onde
der.
A quantidade de pessoas não foge a regra das bagagens: também é onde
der. Em determinado momento eu tinha metade de uma criança dormindo no meu colo
e a outra metade tentando segurar a mochila de 65 litros. E como nas viagens
mais longas não há paradas – a não ser quando o motorista se joga na beira da
estrada para, do nada, entregar um saco de carvão para um mulher que sai do
meio do mato – em determinado ponto as pessoas sacam um papel alumínio com
frango assado da bolsa enquanto você está no dilema sede x vontade de fazer
xixi.
É por isso que, depois de quase dois meses viajando exclusivamente
de minitaxi/chapa/dallah-dallah, cheguei a conclusão de que andar nestes meios
de transporte é um processo meditativo. É um constante aprendizado de saber
encontrar a paz (e o espaço) interior frente a um ambiente insalubre e eminentemente
claustrofóbico. É saber estar imune aos riscos da direção agressiva do
motorista, ao mormaço de chulé com camarão seco represado no veículo, da vontade
desesperada de ir ao banheiro sem perspectiva de parada, do sobe e desce
interminável de passageiros que faz com que uma viagem de 300km demore 8 horas.
É resignar-se frente a uma situação não como uma postura de derrota, mas sim
com a vitória de ter conseguido manter-se sã no meio do caos. Sim, é reconhecer-se
uma sardinha meditativa em sua plenitude.
Gabi Gambi
Gabi Gambi
SORRY MR. MANDELA. THANK YOU MR. MANDELA.
[Um olhar ingênuo sobre o pós-apartheid]
![]() |
Museu do Apartheid |
O que escrever com propriedade sobre um assunto que se conhece tão
pouco mas ao mesmo tempo evoca emoções tão primárias? Estar na África do Sul –
mesmo que por menos de um mês – me trouxe sensações de estranhamento,
solidariedade e pertencimento. É impossível não olhar esse país e se comover sob
a ótica de sua história recente, seus líderes e sua luta pela igualdade racial (ainda
que em direito). Já que a propriedade em pesquisa e estudo sobre o tema – infelizmente
e ainda – me faltam, falemos de sensações.
Sente-se o Apartheid em cada esquina, ponto de lotação e até na
língua.
Apesar do roteiro turístico de belezas naturais, animais exóticos e
o desligamento das “coisas sérias” que as férias normalmente proporcionam, tudo
isso não impediu de revelar um país ainda dividido entre brancos e não brancos.
Nem mesmo a classe média negra e mulata de Johannesburg, que passeia
por shoppings luxuosos de Sandton e Rosebank, conseguiram me convencer que o
Apartheid não está mais presente no cotidiano das pessoas. Há que se reconhecer
– comprovadamente em conversas com diversos locais – que o direito de ir e vir,
de ocupar posições na sociedade, de adquirir propriedade, etc, foram avanços
fantásticos na vida dos “não brancos” desse país. Mas dai surge a dúvida: para
quantos?
Os mineiros (boa parte da atividade econômica sul-africana) ainda
são em maioria esmagadora negros, trabalhando em condições desumanas e ganhando
salários miseráveis. Recentemente em greve geral, foram massacrados pela
polícia. As townships, aglomerações
populacionais de baixa renda, continuam se espalhando nas rebarbas das maiores
cidades como Johannesburg, Cape Town, Durban e Port Elizabeth, muitas delas
ocupadas por imigrantes negros de países vizinhos como Zimbabwe, Malaui e
Botsuana.
Em viagem de mais de 2000km pelo país, usando a rede de transporte “popular”
– os minitaxis (lotações), ônibus e
trem – éramos os únicos brancos, se é
que nos classificariam assim naquele tempo de segregação.
Episódio interessante e que se repetiu diversas vezes, era o de esperar
a lotação encher pra seguir viagem. O fato de simplesmente estarmos ali
representava quase uma atração turística aos locais que nos atiravam olhares de
interrogação e depois escárnio. “Como assim um turista branco vai andar nisso
aqui?” – é o que deviam falar sem que entendêssemos nada de sua língua natal
(que não é o inglês ou o afrikaan,
obviamente). Nesse tempo de jornada, não conhecemos nenhum dono de albergue ou
restaurante negro ou mulato. Não encontramos nenhum branco ocupando o apertado
e desconfortável assento de lotação entre uma cidade e outra. Descobrimos que o
nosso futebol aqui é esporte de negro. O
rúgbi de branco. O críquete de branco (com ajuda de imigrantes indianos, boa
parte da população). Isso é integração? Apesar da superficial análise da
sociedade local, uma pergunta o tempo todo martelava minha cabeça: no Brasil é
diferente?
Após mais de uma década lendo e acompanhando de longe a luta desse
povo para acabar com essa bizarrice político-jurídica, incompatível com o fim
do século XX, confesso que fiquei desapontado (ingenuamente, reconheço) com o
que foi anunciado por Mandela como a Rainbow Nation, a sociedade de todas as
cores. Uma pena, sorry Mr. Mandela.
Entretanto, apesar da minha decepção, o importante – sobretudo – é
que percebi esperança.
Ignacius, negro, e nosso taxista em mais de uma ocasião, conta que
sua geração não viu e não vai ver o fim do preconceito e das divisões raciais.
Sente que está incrustado nas pessoas mais velhas. No entanto, diz que seus
filhos terão uma vida diferente, afinal, brincam lado a lado com crianças
brancas. Acredita piamente que o futuro será melhor.
E será. Um povo que sabe reconhecer seu passado e consegue olhar o
horizonte a partir dali, sem máscaras e amenidades, certamente está fadado a
não repetir sua trágica história. O Museu do Apartheid é o marco físico e
concreto que mostra aos turistas do mundo inteiro e aos sul-africanos que essa
história deve ser contada e recontada. Nua, crua, ao mesmo tempo como lembrança
e vergonha, mas também motivo e força para a conciliação pregada por Madiba.
Ao sair de lá não consegui parar de pensar na (finalmente)
constituída Comissão da Memória e da Verdade, criada para apurar os crimes
cometidos durante as ditaduras recentes no Brasil. Oxalá sigam o exemplo
sul-africano e deixem um legado tão bonito quanto o que encontrei por aqui para
as gerações futuras. Thank you Mr.
Mandela.
Talvez um dos relatos mais impactantes na tentativa parca de
compreender o que representou o Apartheid e um pouco da vida no sul do
continente tenha vindo outra vez do nosso amigo taxista Ignacius. Torcedor do
Orlando Pirates, um dos times de futebol de Soweto, ele veio do Zimbabwe no
meio dos anos 80, auge do regime de divisão de raças. Durante seu relato sobre
o que podia e o que não se podia fazer naquele tempo perguntei a ele por que
tinha saído de seu país para vir à África do Sul mesmo sabendo o que
encontraria ali. A resposta veio gelada como um soco no estômago, até óbvia e
previsível, mas não para minha resistente ingenuidade: “lá havia guerra e não
havia comida. Aqui ao menos consegui alimentar minha família”.
De fato, hoje Ignacius dirige um taxi e tem um sítio em sua terra
natal, para onde viaja duas vezes por ano para que seus três filhos possam ter
contato com sua cultura.
O Apartheid racial acabou em 1994 graças ao esforço de muitos
sul-africanos como Nelson Mandela, Robert Sobukwe, Steve Biko, entre outros. Já
a luta pelo fim do Apartheid social e econômico está só começando, e não é um
desafio somente da África do Sul ou do Brasil. Esse é o dever da nossa geração,
para que as que virão no futuro também só conheçam esse mal através de belos museus.
Ivan C. Marques
LEOAS MOÇAMBICANAS
[elogio à força e beleza
destas mulheres]
Sabe da força implacável de uma leoa quem já teve o privilégio de
respirar ao lado de uma. Enormes e ao mesmo tempo esguias, têm um olhar
penetrante que exerce atração fatal pela simultânea dureza e feminilidade. Foi
assim que percebi as mulheres moçambicanas.
Estas, por sua vez, também surgem com olhar felino, amendoado, seduzindo
por uma beleza crua. A certeza dos gestos, as vezes medidos as vezes inesperados,
remete à altivez segura do gatos que envolvem sua presa e confiam na sua
habilidade de cair de pé.
Tal qual as leoas, estas mulheres trabalham, o tempo todo, incansáveis
e obstinadas enquanto seus homens esperam à casa. Sabem que delas depende o
sustento do lar, a constância da comida à mesa e o fazem com a garra de quem
está ciente de sua função de provedora da prole – sem tempo para questionar-se
da justiça da vida.
Fazem das capulanas suas
presas afiadas para uso diário. O colorido das estampas envolve o bebê a tira
colo, cobre do frio, abriga para mijar de pé (porque não?), embala as compras,
equilibra o peso do sustento sobre a cabeça, enfeita o cabelo e o rabo. Sábias
estas leoas, têm sempre uma capulana
envolvida no dorso, disfarçada de mero adorno colorido tradicional, para
leva-las ao ataque orquestrado de um mundo sem dó.
Porque fêmeas, trançam os cabelos uma das outras em incontáveis desenhos,
identidades, ronronando sorrisos e confissões. Tocam-se em abraços, carinhos e
com-tatos tão raro a esta terra árida. Exibem-se aos machos sabendo do melhor
de si, nos irresistíveis fartos seios e largas ancas que denunciam sua
fecundidade.
São as verdadeiras rainhas desta selva de pedra. Talvez não o
saibam, mas desempenham este papel com maestria impecável que só é possível
àquelas que têm peito aberto pra encarar a vida – e a morte – no dia a dia.
Sorriso branco e traços fortes que traduzem a essência de ser mulher, fêmea. As
leoas moçambicanas.
Gabi Gambi
13 comentários:
parabens....essa é a essencia das moçambicanas,belas,....admiraveis
Strong mas com doçura!!!
E as cores dessas leoas? Como pode haver tamanho colorido luminoso em uma rotina tão árdua.
Adorei o peito aberto e a gratidão pelo ensinamento do respeito.
Em cada lugar há um conceito do "belo" e você percebeu a alma desta mulheres.
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Ivan
A ingenuidade da sua percepção acaba quando a vivência e a tomada de consciência da vida real do próximo fazem parte da sua vida, mesmo que por algumas horas ou dias.Apenas precisa querer sentir.
Para mim essas pessoas que fazem a gente repensar são os verdadeiros heróis porque buscam a sobrevivência dos filhos com garra e esperança e jamais desistem.O taxista é um vencedor!
Acabo de conhecer na Chapada dos Guimarães um peão-guia, de um grande fazendeiro frances de soja. Leonardo é descendente de índios e nos feriados e períodos de férias é guia para acrescentar um extra na renda mensal.Simples,pele escura,com dentes reluzentes de brancura e perfeição tem um conhecimento de mata, cheiro, animais que é invejável.
Engraçado que ambos tem a mesma luta e tenacidade pois fazem parte na maioria dos momentos dos excluídos. Mas, as vezes, me pergunto: será que somos nós os diferentes?
Gabi!
Essa expressão "sardinhas meditativas" foi ótima e se parece muito com a situação que ainda se vive no Maranhão. O desrespeito e a relação de poder dos condutores ao insistir em criar as próprias normas de transporte precário, para grande parte da população que vive no entorno de São Luís. a aglomeração é a mesma e a bagagem ídem, incluindo camarão e peixe seco, que se consome muito por essas paragens (porque será, não?. a diferença é que há muitos "brancos' de pela... embora a população seja predominantemente preta autodeclarada! Parabéns pelo texto e ótimas meditações para vocês! Beijos!
Gabi e Ivan,
Acho que de toda e qualquer expectativa de comentários que vocês pudessem ver, uma mensagem minha talvez fosse das menos esperadas!
Cada qual na sua observação, ou na sua história, trouxe um pouco daquilo que vocês são, e o que é mais tesão, muito do que o mundo, fora da minha bolha é. Não tenho dúvida que, a publicação deste tipo de percepção, somada ao crescimento das próximas gerações de Ignacius´, Dudas, Gabis, Celinas, etc., possam de fato ser o tal do agente de mudança.
Saudades de vocês, mas enriquecido com o que, como sempre, tenho aprendido com vocês.
Beijos grandes!
Ivan!
A beleza e a profundidade dessa reflexão "Um povo que sabe reconhecer seu passado e consegue olhar o horizonte a partir dali, sem máscaras e amenidades, certamente está fadado a não repetir sua trágica história. O Museu do Apartheid é o marco físico e concreto que mostra aos turistas do mundo inteiro e aos sul-africanos que essa história deve ser contada e recontada. Nua, crua, ao mesmo tempo como lembrança e vergonha, mas também motivo e força para a conciliação pregada por Madiba." são únicas e como eu quero que isso seja verdade! Nesses dias de comemorações referentes à consciência negra, vi e li muitas coisas e ainda sinto que nós, brasileiros, ainda estamos distante dessa integração de gente, independente da cor da pele... Obrigada por esse presente! Beijo grande para vocês!
Ivan, traste
"Olá amigo por que demorou tanto?"
Esse questionamento fez meu coração explodir!
EU ADOOOOORO VOCÊ.
Gabi!
Uma das reflexões mais poéticas e bonitas sobre uma mãe! você falou sobre uma vida, com tanto prazer e admiração que me fez chorar, mas de alegria...
Esse carinho imenso que vc demonstra é uma prova de que é possível viver, ser mãe, (re)descobrir-se, "mochilar" com os filhos... SER FELIZ!
Parabéns menina linda!
Que todas as mães podessem receber uma declaração de amor como essa!
Beijos!
Gabi e Ivan
Faz um tempo que viajo com vocês aqui pelo blog. Conhecem aquela frase de brincadeira que a gente usa quando alguém vai viajar: tem um lugarzinho na mala pra mim? Pois é... vocês reservaram um espacinho pra gente nessa mala.
A verdade é que fiquei fascinada por vocês (talvez até mais do que pela viagem), pelos desafios que enfrentaram, pela decisão de sair pelo mundo, mas muito mais do que isso: pelo modo como vocês enxergam esse mundo, a lente que usam para mostrar culturas e lugares tão diferentes, e algumas coisas tão iguais (no aspecto humano). Isso nos faz viajar com vocês.
Além de nos presentar com a viagem e paisagens de tirar o fôlego, vocês foram além, um texto rico, belo, reflexivo e forte. Me lembra um trecho de Fernando Pessoa: "Navegar é preciso".
Como vocês escrevem lindo. É de dar gosto. Parabéns. Obrigada.
Ivan
Carinho, gratidão, realização, solidariedade,admiração e saudades percorreram meus sentidos durante toda a leitura desta última postagem. Relato extremamente belo!
Um dos parágrafos que você escreveu e que quando eu li percebi o brilho de suas palavras:
"Essa volta ao mundo, os dez meses que “tiramos” do resto de nossas vidas para percorrer esse trajeto nada mais é que uma pequena fração de tempo em que resolvemos dar vida aos nossos sonhos – à nossa essência"
Sou mais feliz, rica de imagens e sensações interiores porque durante esses dez meses vocês me "deram" essa oportunidade.
Obrigada.
coisa linda, coisas lindas de ler.
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